“Eles nos escolheram”: as famílias que desafiam o medo e adotam crianças com condições de saúde permanentes

Por Felippe Mattes Cavichioli.

Em uma sala clara de azulejos antigos, em um bairro tranquilo de Toledo, uma menina de sete anos segura com firmeza o estojo de insulina e sorri como se a vida toda coubesse naquela pequena conquista. Luiza foi adotada aos cinco anos por um casal que, até então, resistia à ideia de acolher uma criança com diabetes tipo 1. Hoje, afirmam que foi ela quem os adotou.

Histórias como a de Luiza são raras — não pela ausência de crianças com necessidades permanentes nos abrigos, mas pela escassez de famílias dispostas a vê-las além do diagnóstico.

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mais de 70% das crianças disponíveis para adoção no Brasil possuem alguma condição que dificulta sua colocação em uma família: HIV, deficiências motoras, transtornos de desenvolvimento, doenças crônicas ou síndromes diversas. Ainda assim, a maioria das 46 mil famílias habilitadas restringe seu perfil às chamadas “crianças saudáveis”.

Em contraste, poucos pretendentes que estendem seus critérios acabam encontrando seus filhos muito mais rapidamente.

Adoções que fogem da curva

A Associação ao Grupo de Apoio à Adoção de Toledo (AGAAT), em parceria com a Vara da Infância e Juventude da cidade, tem trabalhado para mudar esse cenário. Mais do que promover encontros entre pretendentes e crianças, a AGAAT oferece escuta, acompanhamento pós-adoção e algo raro: coragem em rede.

“Temos visto famílias se abrindo para perfis antes impensáveis. O que começou como um receio virou um encontro”, diz Rita Chicarelli Ruiz, assistente social atuante no Núcleo de Apoio Especializado (NAE) da Vara. “O vínculo vem do cuidado cotidiano, e não de um prontuário médico.”

Ela menciona casos de adoções bem-sucedidas de crianças com asma crônica, epilepsia controlada, e até HIV — condição que, hoje, com tratamento adequado, permite uma vida estável e praticamente sem limitações físicas ou cognitivas.

“A maior dificuldade não está na criança, mas no estigma que a acompanha”, afirma.

Além do medo: o cotidiano que reconstrói

Adotar uma criança com uma condição de saúde permanente é, de fato, um compromisso diferente. Pode haver consultas frequentes, medicações diárias, dietas restritas. Mas para muitas famílias, o que parecia um obstáculo se revelou um elo.

“Você aprende a medir a glicemia, a entender os sinais, e de repente se pega ensinando sobre isso na escola da sua filha”, conta Carolina, mãe de Luiza. “É um aprendizado para todos. A gente passa a ter outra perspectiva do que significa cuidar.”

Ela e o marido tinham um perfil restrito no Cadastro Nacional de Adoção até assistirem a uma palestra promovida pela AGAAT sobre a realidade de crianças que “esperam demais”. Saíram de lá com um novo olhar — e, meses depois, com uma filha.

Uma fila que não precisa ser tão longa

Em todo o país, há um descompasso evidente: milhares de famílias aguardam o “perfil ideal”, enquanto milhares de crianças — muitas com necessidades específicas, mas absolutamente adotáveis — envelhecem dentro do sistema de acolhimento.

A ampliação do perfil pode reduzir de anos para meses o tempo de espera. O próprio CNJ criou, em 2022, a ferramenta “Busca Ativa” para apresentar crianças e adolescentes com menor chance de adoção — incluindo vídeos e histórias que aproximam o emocional do burocrático. O resultado? Aumento visível nas adoções de crianças com doenças crônicas ou deficiências leves.

“É preciso parar de pensar em adoção como um presente dado à criança. Na maioria dos casos, quem mais recebe somos nós”, diz Daniel, pai de Lucas, 9 anos, que nasceu com bronquiectasia — uma doença pulmonar que requer nebulização diária. “A gente aprende a amar com um senso de urgência e presença que talvez não existisse antes.”

Reescrevendo o que é ser família

Adotar uma criança com uma condição de saúde permanente exige da família algo que não está nos manuais: a disposição de ser real.

Não há idealizações, apenas pessoas inteiras — com limitações, potencial, afeto e desafios. E quando essas pessoas se encontram, surgem famílias que não cabem nos modelos tradicionais, mas que respiram cumplicidade, resistência e cuidado.

“Eles nos escolheram”, repete Carolina, enquanto prepara a lancheira da filha para a escola. “A doença é uma parte dela. Mas é uma parte pequena diante do amor imenso que ela trouxe pra nossa vida.”


Curiosidades e dados relevantes:

  • Crianças com HIV em tratamento têm expectativa de vida semelhante à da população geral.
  • Diabetes tipo 1 é controlável com disciplina e acompanhamento médico — crianças diagnosticadas vivem plenamente e participam de atividades escolares e esportivas.
  • Adotar crianças com condições crônicas garante prioridade no trâmite processual, conforme a Lei nº 12.955/2014.
  • O Brasil ainda registra um número pequeno de adoções inter-raciais e de crianças com deficiências: menos de 10% do total.
  • A maioria dos pretendentes no país aceita apenas crianças de até 2 anos, sem irmãos, sem histórico de traumas ou doenças.

Não deixe para depois

O ato de adotar, por si só, já é um gesto de transformação. Mas quando a escolha é feita por uma criança que carrega consigo não apenas o passado institucional, mas também o peso de um prontuário médico, o gesto se torna revolucionário.

É ali, no cuidado com o inalador, no lembrete do horário do remédio, no abraço após o exame, que nasce um vínculo menos idealizado — e mais real. Um vínculo que, curiosamente, parece mais forte do que qualquer outro.

E, para quem ainda hesita, fica a pergunta: e se for exatamente essa criança quem está esperando por você?

Alteramos as datas e nomes desta matéria por questão de segurança e para guardar a privacidade da família envolvida.

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